Hip Hop, liberdade e Software Livre

Há 5 meses tive uma das experiências mais incríveis da minha caminhada de militante do Projeto Software Livre Brasil. Eu conheci a cultura Hip Hop e os diversos pontos que esta cultura tem em comum com o software livre. Agora tenho a possibilidade de escrever um texto para esse público, sobre o porque o Software Livre precisa do Hip Hop e vice-versa.

Antes de falarmos sobre isso, é importante conhecer o Software Livre. Basicamente, software é o que você xinga e hardware é o que você chuta.

Para explicar a diferença entre Software Livre e software proprietário vou usar uma analogia usada pelo criador desse movimento, Richard Stallman, comparando software e comida.

Se você vai na casa de um amigo e ele faz um jantar pra você, caso você goste daquela comida você pede a receita pra ele, e ele passa para você. Chegando na sua casa, e olhando aquela receita, você percebe que se colocar uma pimentinha que não tinha na receita original o prato pode ficar muito melhor.

Então lá vai você para a cozinha e prepara o prato, só que desta vez com a pimenta. Você experimentou o prato com pimenta e adorou e agora quando alguém lhe pedir a receita daquele prato, você passará a receita constando sua pimenta nos ingredientes. Se você não gosta de cozinhar, simplesmente ignora a receita ou então apenas a reproduz, mas se quiser modificá-la, você sabe como fazer.

Agora vamos fazer um exercício e imaginar um mundo onde não se possa copiar a receita? Você pode comer, mas não pode saber quais os ingredientes nem muito menos mudar aquela receita, simplesmente porque alguém instituiu que você não pode fazer isso. Parece estranho né?

A receita, isto é, a lista de ingredientes de um prato, é como o código-fonte de um software. Tendo acesso ao código-fonte, você pode adaptar um software às suas necessidades, ou adicionar uma pimentinha a mais caso você queira.

O que isso muda na sua vida?

1) Você ganha segurança, porque sabe que ninguém além de você está lendo os seus e-mails quando você usa um programa livre. Porque como eu disse antes, com o software proprietário você não teve acesso à receita daquele software e não pode ter certeza que ele faz somente aquilo que se propõe. Assim como não tem como saber se tem ou não veneno em um prato que você não tem a receita.

2) Você ganha acesso à tecnologia, porque os softwares livres te dão possibilidade de estudar um software totalmente, aprender como funciona e se tornar até um especialista naquele software. Com o software proprietário e fechado, a empresa que fez o software limita seu acesso.

3) Você barateia os custos de um computador. Quando você compra um computador na loja e ele já vem com Microsoft Windows e Microsoft Office instalados, você está pagando por aqueles produtos, que custam cerca de USD 700 no mercado internacional. Convertendo para reais, isso equivale a mais de R$ 2.000,00. Mas e se eu usar software pirata? Você é um criminoso.

4) Você não é um criminoso. As leis brasileiras prevêem até 2 anos de prisão para quem usa software pirata. Um cidadão que trabalha 40 horas por semana, batalha para comprar um computador não tem a necessidade de se criminalizar por usar um software pirata que possui equivalente em software livre.

A internet é um meio de comunicação extremamente poderoso, porque ela pode ser televisão, rádio, jornal e revista tudo junto. E isso potencializa as comunidades que a utilizam. Porque a internet é tão poderosa? Porque ela não tem um dono, ela é de todos nós. Porque ela não tem dono? Porque é baseada nos mesmos conceitos do software livre, que é a transparência, que nós chamamos de padrões abertos.

Se a Microsoft por exemplo, tivesse inventado a internet, provavelmente ela seria mais elitizada do que é hoje porque assim como pagamos para usar os softwares que ela criou, pagaríamos pela internet, o que inviabilizaria o seu uso, como inviabiliza a inclusão digital dos cidadãos comuns usando esses softwares caros e obscuros.

E cade o Hip Hop nessa história toda?

A liberdade de acessar as receitas do software que falamos antes, é garantida pelo mesmo tipo de leis que a usadas para restringir o acesso completo aos softwares, e essas leis são chamadas de Copyright (Direito de Cópia). Nós do software livre chamamos o copyright de software livre de Copyleft (Esquerda da Cópia).

O movimento Software Livre existe há mais de 20 anos, e por isso outros setores começaram a notar que o mesmo tipo de leis que vetavam o acesso das pessoas às tecnologias, vetam o acesso aos bens culturais por exemplo.

Um artista que grava um CD com alguma gravadora, recebe menos de R$ 1,00 pela venda de uma unidade daquele produto, mas a gravadora acaba ficando com R$ 25,00 ou mais.

O programador que trabalha para uma empresa de software ganha o seu salário no final do mês, e a empresa que vende aquele software fica com todo o dinheiro que ela ganha com sua venda.

Isso é certo? Quem são os detentores do talento e conhecimento tecnológico? Eu acredito que assim como as empresas de software proprietário, as grandes gravadoras também têm que arrumar alguma forma de ganhar dinheiro trabalhando. Porque copiar CD não dá mais dinheiro, e é isso que elas têm feito esses anos todos para se manter. Então você me pergunta: Você quer que essas empresas acabem? Eu digo não. Só quero que elas trabalhem um pouco pra ganhar dinheiro, porque a gente tem que trabalhar muito pra isso não é verdade?

Em junho de 2004, durante o Fórum Internacional Software Livre, em Porto Alegre, tivemos o lançamento do Projeto Creative Commons, que tem como objetivo a criação de legislação que facilite o acesso das pessoas aos bens culturais. O seu show de lançamento teve participação do Clã Nordestino, abrindo o show do Gilberto Gil, que foi o primeiro artista brasileiro a aderir publicamente a esse novo conceito de licenciamento, liberando uma de suas músicas de maneira que se uma pessoa for utilizá-la sem fins lucrativos, não tenha que pagar por isso. Logo, sua distribuição através da internet fica livre. E porque um grupo de rap? Isso foi uma escolha feita em conjunto pelo Projeto Software Livre Brasil e Ministério da Cultura, como forma de aproximar esses movimentos.

Além disso, existem outras questões envolvidas e uma delas é o uso da internet para criar conexões muito mais ágeis e rápidas entre diferentes localidades do Brasil e do mundo considerando o alcance que uma informação que é jogada na rede pode ter.

Você pode mandar e-mail pra qualquer pessoa no mundo através da internet, e isso faz com que as relações entre as pessoas se tornem mais horizontais. Antes para falar com um presidente, um ministro ou outra pessoa que parece inacessível, você precisava encontrar essa pessoa fisicamente, ou ligar pra ela (o que é caro dependendo da distância). Com a internet, você manda um e-mail pra qualquer pessoa. E isso facilita muito a comunicação. O Hip Hop no Brasil tem usado a internet como forma de articulação.

Já temos iniciativas de diversos grupos com websites para publicação de notícias e músicas, porém a utilização desse meio de comunicação ainda tem se dado de forma muito tímida. Aqui, cabe citar sites como Enraizados, Real Hip Hop, Bocada Forte, Minas da Rima e outros que eu infelizmente desconheço a existência.

Os artistas ganhariam dinheiro fazendo shows, o que não muda muito da situação atual. Um exemplo real de facilidade de comunicação: as pessoas que me pediram este texto, moram em Curitiba. Quando me conheceram, eu morava em Porto Alegre, mas hoje eu moro em São Paulo. Porque não tivemos dificuldades de comunicação? Porque falamos por e-mail, e isso independe do lugar onde eu estou. Imagina se a gente precisasse se falar por carta? Ou telefone? Ou pior, nos encontrarmos fisicamente? Acho que até agora eu não saberia que este texto precisava ser escrito.

Os aspectos mais importantes, na minha opinião são: a possibilidade de reduzir os custos para projetos de inclusão digital, e possibilitar a verdadeira inclusão digital. O custo de licenciamento de software inviabiliza qualquer projeto de inclusão digital, porque a cada 2 computadores comprados com software proprietário, você poderia ter comprado 3 com o mesmo valor, se tivesse usando softwares livres, que podem ser obtidos através da internet sem custos.

Porque que software livre não tem custo de licenciamento? Porque ele não tem um único dono, esses softwares são desenvolvidos por milhares de voluntários no mundo e hoje em dia o software livre é a maior obra colaborativa não escrava da história da humanidade. O desenvolvimento é descentralizado e possibilita a participação de qualquer pessoa, desde que ela domine a tecnologia em questão. O que motiva essas pessoas? Acho que isso é conversa pra um próximo texto, longo texto.

E sobre possibilitar a verdadeira inclusão digital? Isto está relacionado a transferência de conhecimento, que significa ensinar uma pessoa a aprender, e não treinar ela para que seja consumidora de um produto. Você ensina uma pessoa a aprender tecnologia, ela decide até onde tem interesse em aprender (voltando à culinária, ela pode querer ser um degustador ou um mestre cuca). Se eu tivesse optado por software proprietário, quem define o que uma pessoa pode aprender é a empresa que criou aquele software, e estaríamos optando por formar consumidores de tecnologia de empresas monopolistas ao invés de cidadãos incluídos digitalmente.

E porque o Hip Hop precisa do Software Livre?

Porque o Hip Hop precisa se apoderar das tecnologias para que sua produção cultural possa ser criada e distribuída mais facilmente e de forma mais barata, e para que mais pessoas tenham acesso a essa produção, seja ela musical ou até mesmo notícias locais das comunidades mais distantes. Também cabe lembrar que existem softwares livres que substituem os caríssimos softwares para edição de áudio e vídeo, facilitando a montagem de estúdios multimídia sem grandes gastos com licenciamento de software. Além disso, o uso da Internet somado ao domínio das tecnologias de software pode potencializar o Hip Hop enquanto ferramenta de transformação social. E por último, o domínio das tecnologias inclui as pessoas nessa era da sociedade da informação. Dar as pessoas o direito de acesso as tecnologias é abrir um novo leque de possibilidades inclusive no mercado de trabalho, cada vez mais competitivo e exigente.

E porque o Software Livre precisa do Hip Hop?

Porque a maioria do nosso povo vive nas periferias das grandes cidades, e esse é o espaço do Hip Hop e este é a linguagem da periferia. E nós do Software Livre, como qualquer cidadão consciente, queremos uma sociedade mais justa onde as pessoas tenham acesso de forma mais igualitária à informação e à cultura digital sem criar dependência dessas pessoas com relação aos fornecedores de software. Para que isso seja possível, precisamos aproveitar o alcance dessa poderosa linguagem usada principalmente pelas periferias para criar conteúdo, disseminar conhecimento e incluir nossa população na era da tecnologia da informação.

Software Livre: socialmente justo, economicamente viável, tecnologicamente sustentável.

Links relacionados:
www.softwarelivre.org - Projeto Software Livre Brasil
www.creativecommons.org - Creative Commons

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